Cinzas ao Vento-Bárbara Rocha

Eu não podia acreditar. Ela caminhava bem lentamente na minha direção. Devia ter sido uma menina muito bonita, mas as cicatrizes e o sangue pingando a deixavam horrorosa, enojante. E o cheiro... Cheiro de morte.

E ela, apesar de tudo, caminhava na minha direção. Acho que, em toda a minha vida, foi a coisa mais dolorosa que já fiz: apontei o revólver calibre 38 e atirei na cabeça do zumbi-menina.mais sangue e miolos espirraram, e ela finalmente caiu e parou de se movimentar.

Eu não estava preparada para aquilo.

Ninguém sabe como aconteceu. Um dia acordamos e alguns de nós estávamos meio mortos e meio vivos. Em poucas semanas, quase todos já estavam do lado deles. Os poucos que sobraram lutam todos os dias para encontrar comida e armas e munição e para se defender. Sou mais uma num grupo de quase 30 pessoas. Eu e mais quatro tivemos treinamento no Exército. Sou – ou pelo menos era, porque todas as instituições faliram – cabo do Exército. Minha irmã mais nova foi assassinada por um desses mortos ambulantes. Tive de dar um tiro em sua cabeça quando ela começou a querer me atacar. Meu pai não aguentou a crise; o encontrei enforcado na sala. Como minha mãe morreu a quase 10 anos de câncer de mama, só sobrei eu.

O moço me disse que o nome dele é Johnny e que ele costumava ser professor primário, mas, assim como eu, ele perdeu seu emprego e sua família: sua esposa se tornou um zumbi, e ele não conseguiu matá-la. Foi parar no grupo por acaso: estava assaltando o mesmo restaurante que o meu companheiro Paul. Sinto dizer que Johnny quase levou um tiro, até que conseguiu provar que ainda estava 100% vivo.

Paul fez o treinamento comigo, e eu não sei como um sujeito tão esquentadinho consegue lidar com a disciplina do Exército.

Não reparei bem nos outros, e fico quieta na minha, cumprindo minhas tarefas no grupo.

Estava fazendo frio, e não deixei que acendessem uma fogueira grande (para não atrair mortos-vivos para perto do acampamento; eles parecem ficar mais ativos à noite). Uma moça, grávida, não se conformou e começou a gritar e pular até que sua bolsa amniótica estourou e tivemos que fazer um parto prematuro. Estávamos naquele momento num acampamento a cerca de 20 milhas de qualquer cidade. E qualquer cidade teria muito pouco a nos oferecer. Imagino que há outros sobreviventes, outros grupos, lutando como nós.

O nenê sobreviveu dois dias apenas. Era muito prematuro e não tínhamos como cuidar dele de acordo. Dois meses depois a mãe se jogou de um precipício. Sabia que era uma perda, dois seres humanos que se foram, mas tudo em que eu conseguia pensar era: duas bocas a menos para comer.

Em minha defesa (não tão boa): são dias difíceis, e a morte está rastejando por todos os lados tentando nos transformar a todos em mortos que andam. Não há muita comida nem expectativa. Quem morrerá amanhã?

Semana passada um grupo de zumbis atingiu nosso acampamento. Quase 10 pessoas morreram. Conseguimos matar (de novo) todos os zumbis que nos atacaram, mas as perdas foram enormes. Fizemos uma grande fogueira para queimar os corpos (dos já-zumbis e dos futuros-zumbis). Depois juntamos tudo e nos mudamos para outro lugar.

Eu me pergunto: quantas vezes mais isso acontecerá até morrermos todos?

E me pergunto de novo: quando todos os seres humanos tiverem virado zumbis, eles morrerão de fome?

Vou fazer mais uma ronda no acampamento enquanto penso sobre tudo isso.

Qual de nós será o próximo a morrer?

Fonte:
http://recantodasletras.uol.com.br